Harry Potter é "o menino que sobreviveu" à maldição da morte de Voldemort. E Daniel Radcliffe vai sobreviver a Harry Potter ?
Se depender só da tenacidade do ator inglês que incorporou o bruxinho
durante 10 dos seus atuais 22 anos de idade, com certeza sim.
Em junho de 2010 e ainda na Inglaterra, logo depois de terminar as filmagens de Harry Potter e as Relíquias da Morte,
oitavo e último filme da série, ele começou seu primeiro trabalho no
cinema como adulto, no filme de terror dirigido por James Watkins A Mulher de Preto, que estreia em 24 de fevereiro no Brasil. Quase ao mesmo tempo, ensaiou e estreou a comédia musical How to Succeed in Business Without Really Trying,
em Nova York, onde ficou em cartaz por um ano, com folga só às
segundas-feiras e sem ser substituído em nenhuma das seis apresentações
noturnas e duas matinês semanais.
Durante a temporada do espetáculo na Broadway, Radcliffe
participou de vários shows em televisão, como entrevistado e também como
ator, burilando principalmente seu lado engraçado com sátiras do
personagem que o fez famoso em todo o mundo. Nos últimos três meses, ele
tem surpreendido até os relações públicas das distribuidoras de A Mulher de Preto
por sua incansável disposição em comparecer à maratona de pré-estreias e
entrevistas de divulgação do filme, nos EUA e na Europa, assinando
milhares de autógrafos, posando para outro tanto de fotografias, sempre
entusiasmado e sem se queixar de nada.
A dúvida se é bom mesmo ou apenas foi uma criança de sorte na
profissão o faz se desdobrar. Quer e sabe que precisa aprender mais do
que adquiriu na prática dos sets de Harry Potter para construir
personagens, assim como atores da idade dele são ensinados nas escolas
de arte dramática. Conta que com Alan Rickman, o professor Severus Snape
na série Harry Potter, aprendeu que essa dúvida move o artista
e nunca o vai deixar. "No momento que isso acontecer, pare de atuar
porque, se pisar no palco achando que é brilhante, está f...", avisou
Rickman, de 66 anos e há 40 no métier.
Em A Mulher de Preto, adaptado do livro homônimo de
Susan Hill, Radcliffe faz Arthur Kipps, um jovem advogado, viúvo e pai
de um menino de 3 anos. Mandado de Londres para um vilarejo litorâneo
da Inglaterra do início do século passado, Kipps precisa colocar em
ordem os papéis de uma cliente recém-falecida, mas é perturbado pelo
fantasma de uma mulher vingativa e relacionado à morte de crianças. No
geral, as críticas à interpretação que ele deu ao personagem foram
mornas.
Os americanos tiveram mais condescendência. Manohla Dargis, do The New York Times, elogiou a expressão de seus olhos azuis e disse que ele dá "um centro forte e simpático" à história; para Todd McCarthy, do The Hollywood Reporter, ele "carrega o filme com muita habilidade"; Michael O'Sullivan, do The Washington Post,
considerou que o desempenho dele tem um "aplomb razoável". Na
Grã-Bretanha, as notas foram menos bondosas. O crítico do escocês The Daily Record
achou que a atuação de Radcliffe não é daquelas "de evitar comparações
com um pedaço de papelão"; Philip French, do dominical londrino The Observer, só disse que o ator faz o papel "de maneira contida"; e Xan Brooks, do The Guardian, o comparou a "um adolescente fazendo teste para motorista".
No release distribuído à imprensa, Richard Jackson, produtor de A Mulher de Preto,
diz que, como estrela do filme, Radcliffe "estimula um público mais
amplo a comprar ingresso" para ver uma história de terror. A produção
não errou no efeito que as mágicas de Potter ainda teriam no primeiro
filme de Radcliffe como adulto.
A Mulher de Preto estreou nos Estados Unidos em pleno
final de semana do jogo entre os Giants (time para o qual o ator torce) e
os Patriots na final do Super Bowl, quando os americanos não querem nem
saber o que está passando no cinema ali da esquina. Isso não contou
para o público que fez da série baseada nos livros de J.K. Rowling a
franquia com maior bilheteria na história do cinema até agora (perto de
US$ 8 bilhões). Segundo pesquisas, 57% do público que viu A Mulher de Preto na estreia americana tinham menos de 25 anos de idade e 59% eram garotas.
Fãs do bruxo mirim juntaram-se aos jovens que gostam de filmes de
terror e deram ao seu novo desafio o segundo lugar nas bilheterias,
deixando lá US$ 21 milhões (com US$ 22 milhões, o líder naquela semana
foi Chronicle, história de três adolescentes que ganham
superpoderes). Na semana seguinte, o filme com Radcliffe estreou no
Reino Unido em primeiro lugar, gerando £3 milhões , um milhão de libras à
frente de Chronicle, que havia estreado lá uma semana antes.
O esforço de Radcliffe para voar profissionalmente e sem vassoura
é notável. "Acho que nunca vi alguém se atirar num trabalho tão
inteiramente", diz Jane Goldman, roteirista de A Mulher de Preto.
Numa segunda-feira úmida e cinzenta do outono em Nova York, ele passou o
que seria seu dia de folga no teatro sem sair de uma suíte do 30º andar
do Waldorf Hotel, falando do seu novo filme a jornalistas
estrangeiros. A entrevista para o Estado foi a última do dia. Ele
admitiu estar exausto, mas falou do trabalho com tanto entusiasmo como
se, só agora, aos 22 anos, estivesse estreando como ator.
Naquele dia, ele só podia falar que sua próxima aposta no cinema
seria um filme independente. Agora, que já há garantias de
financiamento, sabe-se que, além de persistente, Radcliffe é mais
corajoso do que demonstrou aos 17 anos, depois dos três primeiros filmes
da série Harry Potter, ficando nu na peça Equus, de Peter Shaffer. Dentro de algumas semanas ele deve começar as filmagens de Kill Your Darlings,
história de um assassinato envolvendo os poetas Allen Ginsberg, Jack
Kerouac e William Burroughs, a trindade da geração beat dos anos 1950.
Dirigido pelo ainda pouco conhecido John Krokidas, Radcliffe vai fazer o
papel de Ginsberg que, além de ativista político e social, era defensor
do homossexualismo e do uso de drogas.
Nos últimos cinco anos, além de completar a série Harry Potter, você fez o filme australiano December Boys, as temporadas de Equus
em Londres e Nova York, um ano inteiro do musical na Broadway, além de
participações especiais em programas de TV, tanto na Inglaterra como nos
Estados Unidos. E, claro, filmou A Mulher de Preto. Teve tempo para dormir?
Durmo enquanto ando (risos). Ou ando quando durmo, talvez… Tem
sido um período muito, muito ocupado, sem dúvida! Faz mais de três anos
que tirei três semanas seguidas de folga… Estou cansado… Depois da
estréia e promoção de A Mulher de Preto, posso descansar. Vai
ser ótimo! Mas eu gosto de trabalhar, sabe? Gosto do meu trabalho, tudo o
que sei é trabalhar e, sem fazer nada, fico logo entediado. E agora eu
tenho disposição, tenho vontade, a ambição. Então, vamos lá!
Você vem trabalhando em papéis totalmente diferentes e
quase ao mesmo tempo. É um expurgo, uma dissociação proposital do
personagem Harry Potter?
Depois de trabalhar com um personagem por dez anos, ao sair
daquele mundo de repente a gente quer fazer a maior variedade possível
de papéis em que possa pôr as mãos. Agora estou ávido nessa busca e,
quanto mais diferentes em idade e características eles sejam, melhor!
Você começou a filmar A Mulher de Preto ao mesmo tempo em que ensaiava o papel principal no musical How to Succeed. Chegou a fazer as duas coisas ao mesmo tempo?
Os ensaios eram nos finais de semana. Aquele período foi mais de
preparação, com aulas e treinamento para dançar e cantar, além de
decorar as falas. Era trabalho duro no cinema durante a semana e...
trabalho duro no teatro nos fins de semana! Na produção de um espetáculo
de teatro, o período mais pesado são as primeiras dez semanas. A parte
dos ensaios, de umas quatro semanas em média, é provavelmente a mais
gostosa para o ator. Depois há pelo menos duas semanas de ensaios
técnicos, que é o mais difícil em qualquer trabalho, e, em seguida, as
prévias onde, enquanto fazemos apresentações noturnas, continuamos
ensaiando durante o dia. Aí é duro mesmo... Depois da estreia, fazer
oito espetáculos por semana, de certa forma, fica fácil e é muito bom!
Houve coincidência entre as filmagens de A Mulher de Preto na Inglaterra e os ensaios do musical em Nova York?
Filmamos de meados de setembro até início de dezembro de 2010 e as apresentações prévias de How to Succeed
começaram no fim de fevereiro de 2011. Gosto de trabalhar bastante e
misturar teatro com cinema é ótimo. Ficamos praticamente um ano em
cartaz com o musical, que para mim foi um verdadeiro desafio. Aprendi
muito sobre mim mesmo, assim como aprendi muito como ator.
Como foi ter que aprender a dançar e cantar?
Foi realmente muito divertido! Nunca pensei que gostaria tanto!
Quando tive minha primeira lição de dança, pensei: "Ô, droga.... Vou
odiar isso, sou péssimo nisso." Mas, como alguém me disse: "Se você
dedicar algumas horas em alguma coisa, vai ver como melhora". Eu pus
muitas horas de trabalho e agora danço muito bem! É prova de que
trabalhar duro compensa. Estou muito orgulhoso porque não deixei de
fazer nenhuma apresentação.
Conta-se que você não quis ver nenhuma gravação da peça nem o filmeEquus antes de fazer o papel de Alan Strang, em 2007. O livro A Mulher de Preto, de Susan Hill, foi adaptado para a TV britânica em 1989, teve duas adaptações feitas pela Rádio BBC,
em 1993 e 2004, e, como peça teatral, é a segunda há mais tempo em
cartaz continuamente em Londres, desde 1989. Você viu ou ouviu alguma
dessas adaptações?
Não, nenhuma delas. Eu li o livro, claro.
E por que não?
Por nenhuma outra razão a não ser a de que sei que gosto de
imitar e, mesmo sem intenção, se vejo alguém fazendo algo de um certo
jeito provavelmente vou imitar. Por esse mesmo motivo não vi a versão de
How to Succeed para o cinema enquanto estava me preparando para fazer a peça, não queria ser influenciado.
Você começou cedo numa profissão em que precisa dominar
técnicas diferentes, para palco e para cinema. Como é que afia essas
ferramentas?
Não tenho tantas quanto ainda posso ter, por isso faço aulas
individuais com professores do Royal Court Theatre e também da Royal
Shakespeare Company. Comecei depois do quinto filme da série Harry Potter, quando ia fazer Equus
e queria trabalhar minha voz no palco, aprender a projetá-la. Treinando
técnicas de voz, comecei também a aprender técnicas de atuação criadas
por Meisner e foi muito, muito bom porque, até então, nunca tinha tido
nenhum treinamento mesmo como ator. Tenho dez anos de experiência em
cinema - o que é ótimo! - mas atores da minha idade, que estão saindo
da escola de arte dramática, já fizeram tudo isso - aulas de voz, de
interpretação, de dança - que preciso para ser completo.
Tanto o jovem atormentado de Equus quanto Arthur Kipps, em A Mulher de Preto,
têm questões psicológicas diferentes dos problemas que Harry Potter
solucionaria com mágica. Como você delineou internamente os personagens
para desenvolvê-los sem ajuda de efeitos especiais?
Arthur não é nem de perto perturbado e psicótico como o Alan de Equus.
Mas ambos compartilham de solidão e de um sentimento de injustiça e
afastamento da sociedade. Alan cegava cavalos e provavelmente seria
capaz de fazer mal tanto a si mesmo como a outras pessoas; Arthur é
capaz de fazer mal só a si mesmo, como parece que faria já na primeira
cena em que aparece, enquanto se barbeia.
Arthur é mais velho que você, é pai, é seu primeiro personagem adulto. O que o ajudou a interpretá-lo?
Música tem um papel importante para mim. Ouvir música me dá o tom de uma cena. Para este filme, andei ouvindo Micah P. Hinson and the Gospel of Progress,
de Hinson. O interessante é que as músicas do disco não eram
particularmente relacionadas com o filme... Ouvi muito esse álbum em
2009, durante um período que foi bem negro para mim... Ele trouxe de
volta a sensação de um tempo em que me sentia uma pessoa sombria…
Que período foi esse, o que estava acontecendo?
Quando eu tive problemas com bebida... No fim daquela época, mais
ou menos entre meus 18 e 19 anos de idade, foi quando ouvi aquele disco
pela primeira vez. E voltei a ouvir quando estava fazendo o filme, não
tinha feito isso desde então… Talvez seja uma coisa masculina, não sei,
mas se entro numa sala e sinto que alguém está usando o perfume da minha
namorada isso imediatamente me dá uma forte sensação de paixão. É a
mesma coisa com música. Músicas e cheiros me trazem sensações e
memórias.
Então isso é parte do seu método como ator?
Acho que sim. Nunca tive realmente um método além do próprio
trabalho. Quando faço um filme, me baseio principalmente no texto, gosto
muito de diálogos, das palavras, da linguagem. Uma das coisas mais
interessantes para mim neste filme é uma sequência de quase 20 minutos
sem diálogo. Ter que me comunicar sem verbalização foi muito estimulante
e diferente para mim como ator. Gostei muito!
Depois das experiências tão diferentes de Equus e How to Succeed, o que você gostaria de fazer em teatro?
Fazer uma peça nova, inédita, não importa que seja tragédia ou comédia.
E no cinema?
Espero fazer alguns filmes . Já tenho dois roteiros. Como são filmes independentes, eles dependem de dinheiro…